O Vazio diluvia sobre meu coração

Diferente do dela, o qual ouvi e atesto: está vivo. E já não sei quantos anos são desde quando ouvi qualquer coração. Ao menos a lacuna desta contagem cobri. Ainda não cobri o vazio cuja tempestade assola o meu. Não sou injusta: admito que a sensação do coração dela foi quase como o tomar emprestado. Hoje achei que estava viva, mesmo após chorar três vezes e lamentar todas as outras as vezes das quais saí viva. Mas me leia ou me ouça, caso estas palavras cheguem a ti por algum software de leitura de tela. Independente do meio, grave meu relato, pois este é como agouro, aviso, moral de fábula ou, caso toda minha vida seja apenas um simulacro de si e a ti nada valha pois és feliz, imploro que grave meu relato pois eu vivi. E carreguei a memória do que é amar, por tanto quanto me destruí por militar em causas perdidas. Grave meu relato, pois minhas palavras são verdadeiras.

Hoje me senti bem e temi este momento. Como a sombra da morte, o pânico se escondia e me olhava pela contínua sombra do Vazio em meu coração. Assim como a morte não é a antagonista da vida e sim apenas um de seus estágios, o pânico é apenas um dos elementos de sentir-me bem. Pisei nesta armadilha por muito tempo e temo não ser capaz de me conter. Cristo temeu aceitar a tentação no deserto? Não sou Cristo, sou menor. Porque o Diabo ainda me tenta com as fantasias de ouvir um coração bater, mesmo por empréstimo, se já levou minha alma e todos os dias me pergunto se já não morri? Cristo, hoje vi a vida diante de mim e imploro que intervenha, já não quero mais ser iludida. Vi minha pilha de livros e desejei nunca os terminar de ler. Desejei ouvir o coração dela novamente, mas hoje ela não estava mais aqui. Foi viver, ao contrário de mim. Apenas olhei a vida pelas janelas do pensamento, pois já não caio mais nesta armadilha.

No barco que flutua sobre o dilúvio do Vazio em meu coração, bateu a meia-noite. Ouvi a canção mais bela: o ritmo da vida no coração dela. Mas flutuo neste barco há muitos anos e conheço as velhas histórias. Conheço as histórias sobre a letal armadilha da qual invejam todos os animais de emboscada. Da biolumnescência abissal à paralisia afiada do crocodilo, todas as selvagens e brutas criaturas de emboscada almejam a beleza das canções das míticas Sereias ocêanicas. Cantam e nadam com a fluidez que esperava da vida. Prometem o amor que prometi à H.. E mergulhei nestas promessas tantas vezes mais após H. e encontrei a mesma brutalidade das criaturas de emboscada. Fui amordaçada e nunca disse adeus. Fui retorcida e afogada e nunca pude clamar perdão. Meus ossos se quebraram por doces palavras, enquanto o crocodilo invejava não gastar tanta caloria e tanta hora ao ver meu sangue surgir na superfície da água, o qual pode apenas farejar.

A beleza de Afrodite era sua peçonha e já não caio mais nesta armadilha. Quanto de meu próprio sangue derramei na eterna batalha contra exércitos de demônios para defender o seu retrato e assegurar que pudesse o encarar por mais uma vez? E dela veio somente mais doces palavras e sacrifícios. Hoje eu vi o retrato de Afrodite e ela falava comigo. E suas palavras tinham o ritmo do coração dela. E quis ler e construir e buscar e viver. Quis um coração permanente, meu e de quem eu pudesse ouvir num abraço inesgotável, por tantos dias quanto eu dure.

Hoje ouvi as canções das Sereias e ouvia junto o chacoalhar das caudas das serpentes prontas para me destroçarem. O terror estava próximo e a tentação, imensa. Queria sair, ler, buscar, viver. Não dá, não aguento, já não tenho mais proteína para ser liquefeita pelos venenos refinados pelos séculos de darwinismo nas serpentes. Deus, quanto desespero é querer viver. Como queria mergulhar nas profundezas e ser sufocada novamente e ser destruída novamente por H. em troca de apenas mais três meses de namoro. Eu voltaria para ela, apesar de todo o pesar. Pois sua canção é a mais bela e eu fingiria não ouvir minha própria alma amaldiçoada gritar das profundezas.

Talvez não haja nenhuma auto-preservação ou prudência quando meu cautelo dos desejos de vida. Talvez todo este dilúvio seja apenas as ondas causadas por cada lágrima quando respinga ao me lembrar que H. nunca me destruirá novamente.

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