Penduricalhos na porta diante de mim. Uma guirlanda revestida com detalhes de ouro, luzes. Parecia artesanal, decididamente realizada para se pendurar na porta decididamente colocada diante de mim. A porta da vida, a escotilha de escape do náufrago. A porta a qual atravessaria hoje e encontraria uma boa refeição, encontraria pessoas para compartilhar algum fragmento de possibilidade daquilo que já me convenci ser impossível: escapar do náufrago. Porém mesmo na pior das tragédias há ainda algum fragmento de possível e, como humana, ainda há como cair no engano de acreditar nestes fragmentos.
Não pudera ser, de outra forma, a porta. Decididamente colocada diante de mim com os mais bobos estímulos ao que ainda há de primata em meu cérebro. Um guizo, uma luzinha piscante, cores. Estética, bonita. A porta da vida não poderia ser de outra forma, conforme me relatam certas criaturas as quais considero patológicas. "Atravesse-a, resta-te o naufrágio se ficar". É na verdade muito difícil já não ter nada a perder ou, mais precisamente, não se importar com qualquer coisa que ainda há para ser perdida. De fato, só me resta o naufrágio, lento e tortuoso. Abra a maldita porta.
Ocultava-se, de forma tal que só pude reparar quando já estava dentro da vida, um raquítico cavalo sobre o qual montava um carcomido cavaleiro. De mandíbulas só lhe restava a superior e sua boca pendia e sacudia como um trapo, da qual escorria um líquido reativo e brilhante como as luzes da guirlanda na porta da vida. De olhos, só lhe restava o direito pois parte de sua face era branca como se seu crânio fosse escovado com alvejante e este fosse seu orgulho de cavaleiro. Sua nobreza carecia de escudo e espada e lhe restou somente um pedaço de crânio esburacado do qual cuidava com o esmero digno de sua hierarquia.
Ao seu lado um violinista tocava qualquer coisa de lamento. Os ossinhos que outrora sustentavam seus dedos permitiam uma precisão ímpar ao definir as notas nas cordas. O som era baixo, para ouvir somente quem o acompanhava. Não trazia motivos de alegria nem seu objetivo era o contágio. Talvez sofria tanto quanto eu e carregar o violino fosse sua única saída. Tocava para si e para quem estivesse já tão perto que o lamento não era provocado pela música, era originário do coração e já não tinha nada a perder, ou já não se importava em perder o que houvesse.
Enfim, caí, novamente, no truque: ao atravessar a porta da vida, encontrei meu cortejo fúnebre.