O único cavaleiro

Não se escapa das artimanhas do Demiurgo. Fui condenada à uma atividade do escritório com a mais bela de nós, médias criaturas de média classe assalariada por cargos médios. Ela é a régua cuja escala é inadequada para toda a mediocridade e nos demonstra a verdadeira dimensão da obra do Mundo, em relação a qual nem o empilhamento de todos as obras humanas, completas ou em andamento, de prédios comerciais da região comercial seriam dignas de nota. Seus olhos são a imensidão do vazio cuja escala de negritude é inadequada para toda a luz dos olhos meus, a qual brilha tanto quanto o Sol mas some como a pequena brasa no pavio de uma vela apagada quando encontra a infinidade dos olhos dela. Deles nada escapa, inclusive eu.

Olhamo-nos com certa frequência ao longo dos dias. Mais frequente que o normal. Mas notei a aliança que carrega. Parece hetero. Mesmo assim não escapo. Mas já tenho certa habilidade, ou brutalidade, suficiente para me recolher à insignificância e pretendia apenas aceitar que o centro de galáxia naqueles olhos são mais profundos e distantes que o centro de galáxias observáveis e seus conteúdos invisíveis, os quais somente fórmulas experimentais e artigos científicos "peer-reviewed" são capazes de arranhar: não há ciência para os descrever. Não há arte para os pintar e corações para os sentir. Há somente minha alma para ser tragada como alma de condenado ao mundo dos mortos.

Dessa vez não pude evitar, escapou ao meu controle. Foi solicitado que nos olhássemos. E compartilhássemos sala, ideias e conceitos. Não saio viva de qualquer reunião que discuta o significado da coluna D, linha 14, no software de planilhas, pois nem a mais mundana e irrelevante tarefa de escritório sai intacta após atravessar os olhos no centro da galáxia. Precisa-se de planilhas em braille e que ela trabalhe às cegas. Descreverioa o que se mostra na minha tela e talvez houvesse amanhã, para mim e meus documentos.

Não haverá. Esta reunião foi articulada desde a origem do Mundo e caminho para meu fim. Argumentarão, naturalmente, que não se sabe o futuro. Alianças se removem, sua sexualidade eu não sei, talvez seja uma tremenda chata insuportável. Não nego tais fatos, mas sei o passado e vi como passei um terço de minha vida. Vi como a história se desenrolou, vi meus esforços e como tão insuficientes foram. Chamariam de são o indivíduo cuja mão já se enche de chagas mas ainda torna a encostar a mão no fogo? Chamariam de são o indivíduo que recusa aceitar a certeza do nascer do Sol?

Chamariam de são o indivíduo cujo corpo consumido pela Peste recusa o remédio pois não se tem certeza de qual é a bactéria?; o soldado vítima de arma química banida e disparada por drones controlados por satélite deve avançar a linha em busca de reverter o rumo da Guerra?; ao retirante caberia firmar pé e plantar na terra seca da qual se cultiva somente o cacto e o urubu, para combater sua Fome? Há algum humano que espera ser agraciado pela imortalidade e sua vitória contra a Morte?

O Amor desceria de seu cavalo, repousaria sua espada e, ao levantar seu elmo, revelaria um semblante acolhedor? Devo esperar seus olhos encontrarem os meus e revelarem a beleza que até agora não encontro e apenas especulo existir como o físico especula as entidades escuras? Se meu corpo pendula amarrado atrás de seu cavalo e sou arrastada pelo chão há uma década, como posso ser sã e acreditar ser carregada por um arcanjo?

Se sou sequestrada pelos olhos da besta que se ergue do mar com dez chifres e sete cabeças, como posso negar o Apocalipse?

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