Encontrei o mítico dispositivo das histórias de assombração e de sites assustadores tão antigos quanto a própria internet. Estava dentro da casa para qual me mudei, no banheiro secundário, aos fundos. Nunca mais o abri. Está, ainda, com os perfumadores de ambiente e, dada a porta sempre fechada, o aroma doce destes produtos se concentra e se potencializa de tal forma que na verdade é possível sentir ao lado de fora. Este traço adocicado agora na verdade me significa algo horrendo: o relógio que cronometra minha mort.
Não há números. É um relógio desses modernos, com estética clean, todo preto. Nenhum detalhe chamativo. Poderia o vestir ao pulso, não fosse a ausência da pulseira. A ausência de números, claramente, não me impede de contar a hora; nunca esqueci como se calcula um relógio com ponteiros. Este apenas confunde um pouco na medida em que roda ao contrário. A flecha do tempo é inexorável e direta. Já a flecha das coisas finitas, por conveniência matemática, regride e apenas contamos quanto tempo ainda nos resta, pela ansiedade da chegada ou medo da despedida. O fora do comum não está nas contagens regressivas, está no relógio analógico cujas medidas diminuem.
Mas, honestamente, basta girar a engrenagem no sentido contrário e qualquer relógio medirá quanto falta em vez de medir até onde se chegou. Curioso, claro, é este relógio fazer isso sem ninguém para o operar. Curioso, mas plausível. A parte realmente esquisita está na ausência dos ponteiros, especialmente se considero que ainda ouço seus pequeninos tiques atrás de uma porta fechada. Atrás de duas portas fechadas e uma sala de distância. No quarto do segundo andar. Não importa o tamanho do imóvel: ouvirei todos os segundos restantes até minha morte.
Ninguém usa aquele banheiro. As visitas usam o banheiro que há no meu quarto, o do segundo andar, e, naturalmente, ninguém nunca perguntou o que há naquela porta dos fundos. Não saberia como dizer. Talvez só um quartinho de bagunças. Não seria mentira, pois neste cômodo está, de fato, um incômodo relógio cuja ausência de ponteiros giram ao contrário e marcam minha morte e isto é uma grande bagunça, mesmo que eu não saiba onde ela está; se na minha mente, na natureza ou nos desígnios de Deus. Será um acidente ou um artifício de diabretes?
Eu apenas sei que marca minha morte, sequer sei dizer quando ela será, pois em relógio analógico algum é possível dizer a hora do evento. Somente quem aguarda por um dia em particular pode imputar ao instrumento a capacidade de dizer quanto nos resta. É apenas um instrumento. Um mero exercício criativo da mente humana. Nenhum sapo saberá dizer qual o dia da semana e o horário do almoço. Nenhum buraco negro possui calendários chineses ou gregorianos nas paredes dos centros das galáxias. Ao relógio, nada cabe. Apesar de aguardar minha morte, não sou capaz de dizer quando ela será, assim como o relógio. E nisto ele é igual a todos os outros. Mas eu sei que nele está este dia. E eu ouço chegar.
Mas não pretendo suscitar questões sobre a falta de sentido da vida diante do fim inevitável. Camus respondeu em definitivo como proceder numa vida tal como definida por Brás Cubas: uma série de edições corrigidas cuja última versão se dá de graça aos vermes. E, da mesma forma que estes não sabem nada sobre dias da semana e estruturas católicas de medida de tempo, nada terão a dizer sobre nós e aos outros humanos ainda viventes caberá apenas constatar o esquecimento. Nem mesmo o esquecimento sobre eu em particular, apenas o esquecimento generalizado, enquanto conceito do deixar-se perder um anonimato entre os milhares de anonimatos que se esquece por dia. Tais são as questões irrelevantes nesse momento.
A resposta está em manter qualquer aparência de vida por esta duração indeterminada. De vida já não me resta nada, apenas emulo o que me foi ensinado por meus pais. Respirar, comer, chorar são meus gestos mecânicos como o operário inglês de séculos atrás. Aperto os parafusos da bioquímica e o resultado final me é alienado. Os afetos e as graças são roubadas de mim pelo patrão do Mundo. E a cada segundo eu ouço o tique do passo da morte. Não preciso a ver nem pegar o relógio nas mãos; cada segundo eu perco um pouco da visão e do fôlego. A audição se mantem aguçada, pois com ela a morte se manifesta e me conquista a cada tique. E sou conquistada pelo cansaço. A esta altura só quero ser carregada em seu colo.
Eu demarquei minha morte neste velho relógio sem bateria, sem ponteiros, sem vida, sem roda e sem rodeios. O anúncio do meu fim já não é uma condenação, é meu aniversário. Olho ansiosamente para cada quadrinho do calendário e me pergunto quando poderei abrir o presente da inconsciência. Não me angustia viver como Sísifo, pois a mim foi negada até a pedra. A montanha foi decepada e minerada. O deserto do Real. Sísifo é só um sonho, um poema. Não imagino Sísifo feliz pois ele não existe. Os urubus da vida comeram seu corpo e levaram meu único projeto de existência.
Queria ser comida pelos olhos daquela mulher, arrancaria meu próprio coração para dar de alimento àqueles olhos.
Mas são apenas aparência. Meu trabalho, minha história, meus desejos. Minhas frustrações e as vezes nas quais vi rolar abaixo a pedra que carreguei. O relógio. Nada disso nunca existiu e ele na verdade não tica os passos da minha morte: apenas anota quanto já andei depois que morri.