Notas sobre A Morte Feliz, de Camus

- Sim, estou entediado - e depois de algum tempo levantou-se, caminhou até a janela e acrescentou, olhando para fora: - Tenho vontade de me casar, de me suicidar ou de fazer uma assinatura de L'Illustration. Um gesto desesperado, sei lá.

Achei cômico esse trecho e completamente algo da espécie que eu diria, pelo menos algum tempo atrás, quando eu ainda tinha capacidade (energia) de ser espertinha e sarcástica. O fato é que eu também tenho eventualmente vontade de fazer coisas desesperadas. Inclusive me casar ou me matar. Ou matar alguém. Ou pelo menos deitar no soco alguma pessoa com olhar torto para mim - estas não faltam, inclusive. Me humilhar diante de alguma ex. Enfim, qualquer coisa. Fazer algo. Sou incapaz de tudo. Por covardia, cansaço, alguma vazia e insistente esperança - que a essa altura me aparece mais como doença.

- Quando vejo minha vida e sua cor secreta, sinto em mim como que um tremor de lágrimas. Como esse céu. É ao mesmo tempo chuva e sol, meio-dia e meia-noite. Penso nos lábios que beijei, na criança pobre que fui, na loucura de vida e de ambição que me domina em determinados momentos. Sou tudo isso ao mesmo tempo. Tenho certeza de que há momentos em que você não me reconheceria. Extremo na desgraça, desmedido na felicidade, não sei dizer.
- Você joga em vários tabuleiros ao mesmo tempo?
- Sim, mas não como amador. Cada vez que penso nesse caminho de dor e alegria em mim, sei bem, e com que arrebatamento, que a partida que jogo é a mais séria, a mais excitante de todas.

Eu me vejo assim num passado recente. Eu estava disposta a sofrer por amor, a ter saudades, a paquerar uma, duas, quinze. Eu já fui rejeitada muitas vezes e, por um número de vezes grande demais para ser apenas coincidência, a pessoa apenas desaparecia sem traços. Como se tivesse se perdido na floresta. Creio que estes já eram as manifestações do desenho reservado para mim e idealizado pela Criatura de infinitos tentáculos. Mas parece que há algo de fundamentalmente diferente agora: a frequência. Pessoas iam com muita frequência, mas também vinham muitas outras com muitas novidades. Isso me alimentava. Agora eu não consigo mais encontrar pessoas e ter tempo hábil de me vincular a elas. As poucas pessoas novas que aparecem sequer respondem. Ou seja, não há pessoas novas. Cada pessoa que apareceu nos últimos três ou quatro anos sumiu, como sempre, e deixou um grande vácuo que não consegui preencher tão cedo. E tão logo preenchi elas se foram e deixaram outro vácuo. Acumulam-se meses de vazio e abandono para algumas semanas de ilusão com a próxima ridícula criatura humana que executará o plano da Criatura de infinitos tentáculos. Queria imaginar Sísifo feliz, mas sequer há pedra para carregar em meu mundo. Minha pedra foi levada.

- Aos 25 anos comecei minha fortuna. Não recuei diante das trapaças. Não teria recuado diante de nada. (…) O mundo abria-se para mim. E, com o mundo, a vida que eu sonhava na solidão e no ardor… A vida que eu teria tido, Mersault, se não fosse o acidente que, logo depois, levou minhas pernas. Você é capaz de entender que eu não tenha querido viver uma vida dimnuída. Há vinte anos meu dinheiro está ali, perto de mim. Vivi modestamente. Mal toquei na quantia.
(…)
- Sem dúvida, fracassei na vida. Mas tinha razão: tudo pela felicidade, contra o mundo que nos envolve com sua burrice e violência.

Não quero viver uma vida diminuída. Prefiro morrer. E não entendo como se pode haver uma defesa do contrário. Minha morte não seria justamente a comprovação de que, sim, com a mais absoluta certeza tenho o direito e o dever de ser feliz? Qual meu destino quando, ao não aceitar nada menos que a felicidade, esta me é negada e já não me restam mais recursos? Como defender uma vida diminuída sem defender por conseguinte a miséria? Em meu suicídio estaria em meu epitáfio que a mim foi intolerável e inaceitável viver sem felicidade. Em minha morte natural arrastada na miséria por décadas só deixarei como registro o testemunho de minha fraqueza de espírito e minha moleza em aceitar por tanto tempo tanto desgosto. Me manter viva é sinal de que meu espírito é pobre.

- Há vinte anos que não consigo experimentar uma certa felicidade. Esta vida que me devora, eu não a teria conhecido por inteiro, e o que me apavora na morte é a certeza que ela me trará de que minha vida foi consumida sem mim. À margem, você entende? (…) Isso quer dizer que no fundo, e no meu estado, ainda tenho esperança.

E medo. Medo de que eu morra humilhada, pois fui incapaz de ser feliz. Morrer inútil, digna de pena.

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