Lent et Doloreux

Eu nunca entendi o piano. Nunca o toquei, nunca me tocou. Um respeito distante, no máximo. É como se faltasse algo entre nós, ou talvez faltasse algo em mim. Também nunca entendi dança. Contemporânea, ballet clássico. Nunca sei o que ou onde procurar, nunca sei o que deveria me atingir. Confesso que fico angustiada e começo a buscar elementos representativos e discursos onde talvez não haja. Como numa pintura abstrata. Talvez seja o fatídico momento de não entender, apenas sentir. Mas não sei também o que eu deveria sentir. Naturalmente já perguntei a bailarinas e professoras de dança "o que é dança e o que há nela?", mas foi decepcionante como foram incapazes de entender a mais fundamental pergunta da arte e recebi apenas as mais mundanas respostas. Talvez seja esta a loucura de minha vida: buscar tudo. Encontrar tudo. Tentar encontrar qualquer coisa em tudo. Sempre estive desesperada por qualquer coisa num mundo repleto de nada e respostas mundanas de quem deveria tecer, com o movimento dos pés e braços, a história e o sentido do Ser. Definitivamente não o fazem com as respostas.

Sequer posso dizer o que quero buscar no piano e na dança. Consigo encontrar a arte abstrata e músicas de concertos. Sinto, não entendo. Apenas me dissolvo no vislumbre diante do grandioso e do detalhado. Mas nunca acessei o piano e a dança. E queria que alguém me respondesse como essas formas de arte duram séculos e se eu deveria me sentir vislumbrada. Alguém, pelo amor de Deus, diga-me qualquer coisa sobre qualquer coisa, inclusive sobre piano e dança. Fico deseseperada de ser incapaz de me vincular com tanta história do Mundo e do Ser. Quanto de alma falta em mim para me permitir encontrar tudo que há no Mundo?

Mas, apesar de tudo, já chorei diante da bailarina. Morena Nascimento, o nome dela. Dispôs no palco velhos projetores de slides giratórios. Os slides eram vazios, brancos. Bordas desgastadas. Fotos vazias de um passado que não me pertenceu e, de tão distantes, nem mesmo a química suportou carregar as toneladas do tempo. Seu corpo transcedia de um passado para outro e nada ficava em nenhum, exceto pelo vazio e toneladas de tempo. E eu nunca vi tão bem materializado meu desespero em ser parte do Mundo, mas me deparar apenas com tudo que não é meu, inclusive meu próprio passado. Já não sei quem fui, pois todas as pessoas que me ergueram se foram. Todos os amores desapareceram e ex-amigas nunca mais aceitaram meus convites. O Silêncio, O Vazio, A Violência. A brutalidade de ter negada a beleza da vida e do amor. Meu corpo se diluvia de uma lembrança para a outra e nada fica. Meu passado é uma coleção de fotos em branco pois foram sepultadas pelas gigantes botas do gigante de toneladas chamado Tempo. Nascimento, o sobrenome da bailarina. Ainda procuro o certificado do meu. Ainda procuro alguma prova de quando me disseram me amar, pois temo ter alucinado.

E as teclas do piano agora me dão enjoo, mas não é o estômago que quer vomitar, é o coração. O enjoo se dá no peito. E eu quero morrer sufocada nesse vômito, porque meu coração não é capaz de segurar mais nada dentro de si e já não vejo mais sentido em buscar nutrição porque tudo é corrupto e corrosivo. Não quero alimentar minha alma por sonda, nem viver uma vida diminuída. E cada tecla do piano demonstra que, sim, existe algo de Belo no Mundo. Mas não entendo o piano, e não sou capaz de entender o Belo. Nunca o toquei, nunca me tocou. O Belo é apenas um quadro a ser observado atrás da linha e não pode ser tocado. E o Belo se abriga em um lugar seco, gelado, escuro, pois até a luz, que nos permite o ver, destroi-o. Se até a luz destroi o Belo, o meu toque é um atentado terrorista. Eu explodi em carnificina todas as lembranças de quem disse me amar. E todo dia ainda assisto chover o sangue daquela meiga menina.

Se há algo para entender do piano e da dança, é que o Belo existe e nunca o consagrarei em minha vida.

27/07/2025

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