Nada enxergo enquanto caminho para entregar, à agência do Correios, minha carta para ser entregue, em meu nome, à ela. Um pouco de charme em ter o selo carimbado e o aroma de século passado. Um pouco de não querer me colocar diante da casa dela novamente. Estaria cega de espírito diante de sua casa assim como estou cega agora pelo Sol. Nem talvez pelo Sol, mas pelas circunstâncias do entorno. Muito cimento, aço e vidro. Muita prata e preto. Não era a luz, seria o calor. Mas esta não é a conquista do Moderno contra as Leis da natureza. A revolta do antropoceno. A paulicéia se desvairou de si mesma, sua história jaz patética e seu rosto, desfigurado. Chamaria de paródia de si mesma, mas paródia insinua algo humorístico e nossa conclusão é tão trágica que nem os líderes espirituais têm coragem de sugerir rir de mim mesma. Ou da paulicéia. Ou dos modernos cujos caixões se velaram fechados.
Jazemos neste mesmo jazigo das autoparódias que nada tem de cômicas. A modernidade agora constroi apenas projeto de estacionamento. Os móveis com a medida do Homem foram chic e agora são apenas móveis do dentista. Nem isso mais, na verdade: a gloriosa revolta do antropoceno firma assento naquelas cadeirinhas de poliéster azul intercalado com preto ou courino. Sólida base de madeira compensada e N irmãs soldadas na mesma barra de ferro. Nem me resta o chic e a subsequente cômica paródia. A modernidade descansa em seu sepulcro de plástico.
Meu óculos, arquitetado com o mais refinado plástico da mais refinada bacia de petróleo que ainda perdura no corpo da mais refinada vida marinha, na verdade apenas dificulta a vista pois não vedo a mão na testa e faço sombra contra o Sol exaustivo e Seus reflexos na pauliceia. A cor do semáforo de pedestres se revelará pela cor de meu sangue esparramado. Ambos vermelhos. Mas hesito. Não posso finar. Mesmo cega, por ela ou pelo Sol, carrego minhas palavras escritas ao longo de duas semanas de ponderações. Orgulho-me delas, mesmo que estejam na classe dos assentos de dentista, jazigos, estacionamentos e paródias - cômicas ou trágicas. Orgulho-me pois são tudo que me restam, para desgosto do inventariante cujo trabalho estará concluído ao ouvir a resposta de sua pergunta: "mas é só isso mesmo?".
Cogito pagar terapeuta como puta fosse. Não quero mais processos terapêuticos, quero alguém que seja obrigado a me ouvir, pois todos se foram. Sexo ou palavras; minhas, ninguém há no Mundo que se interesse. Terapeutas por si mesmas não se interessam em minhas palavras, apenas em seus protocolos. Dizer e sentir são ossos do ofício. Colaterais. Na falta do dinheiro - ou no desinteresse de o gastar com mais esta vanidade - envio cartas e escrevo.
Queria dizer que a amo.
Não disse. Não escrevi. Queria demonstrar a ela o que é amor. "Mostre, não conte". Tentei mostrar a ela o que é amor. O verdadeiro, incondicional, de mãe, amor. Falei sobre levar tiros por ela e dela. Que ela me mate com um riso no rosto e morrerei feliz. Estaria distante da sepultura dos ridículos sonhos modernos fracassados pelo capitalismo. Cumpri meu desígnio e serei paródia de Cristo, não de mim mesma. Quero ser o martírio dela. Alegaria postumamente sua inocência para dar a ela o prazer de aniquilar todos seus ódios com um simples e milagroso gatilho. O botão que Deus esqueceu no Mundo e dá à sua criação o poder que somente Ele dispõe. Nota-se Sua diligência em não "esquecer" semelhante botão para criar a vida como o dispomos para tirar. Longos séculos atrás decidimos que Deus almejava a criação como a parte mais sofrida. A punição das mulheres e da gestação.
Eva cega pelo desejo de conhecimento e eu cega por ela. Meu desejo não era conhecimento, mas ser sua fonte. Queria ser vista por ela como córtex das certezas das quais ela tem dúvidas. Queria ser o farol no recife oculto pelas névoas como ela foi o meu. Queria ter a capacidade de ser essa sensação. Queria ser Cristo e sangrar pelas costelas como prova de meu amor. "Pegue esta lança, A., e perfure meu coração. Dele, guarde os respingos e carregue contigo como carrego minhas palavras nesta carta. Será meu espólio. É tudo que tenho e com ele definirá amor, quando estiver em dúvidas se ele existiu em tua vida. Recuse as histórias, sobre mim, de judeus, ateus e romanos. Recuse o amor de sua própria mãe pois este é ácido e carrega infiltração, como o mofo se infiltra nas sementes de uma bela maçã, intacta por fora."
A., eu seria o coração do animal selvagem morto pelo caçador incapaz de matar Branca-de-neve. Eu olharia nos olhos da madrasta e veria a Morte. E a beijaria apaixonada, embriagada, empanturrada, e de nosso hedonismo fruiria tua liberdade.
Devaneios e loucuras, ainda estou nessa mesma esquina e não sei para qual direção viram os carros. O envelope em minhas mãos. O Sol brilha e não enxergo. Muita vida, muita energia, muito incômodo. Erro o endereço da agência. Acerto o endereço. Entrego a carta, sem rastreio. A esta altura entrego tudo nas mãos do Presidente da autarquia. Não me arrependo, não tenho medo que você leia, pois de ti e da vida nada mais espero. Pelo menos que estas cartas, entregues ou não, sejam a lança que perfurem meu coração crucificado.