Outourga-se luto oficial permanente. Se da inocente juventude se mantinham os gérmens da angústia existencial, nutridos quando ela se olhava e se percebia finita, não somente no sentido de ter fim, mesmo que desfocado e misterioso como uma linha de chegada que se apaga nos últimos cinquenta metros e se redesenha adiante, como também já acabada – este é o último dia que vivi antes de viver meus últimos dias -; se desta juventude brotava o pavor de se reconhecer cronometrada pois não tinha ainda vivenciado o verdadeiro grotesco que há na vida, agora me resto chocada e liquefeita quando sou lembrada dos homicídios que presenciei. Morre-se um corpo que não é meu, mas do qual eu sugava a vitalidade necessária para enfrentar o cronômetro cujos ponteiros são de ossos e cuja meia- noite marca o fim do dia no calendário de folhas amareladas e furicos de traças do qual já se esgotaram as subsequentes folhas. Morre-se um corpo que não é meu, mas que é eu. Um corpo que assisto em terceira pessoa mas do qual se evapora meu nome e nebulizo meus pulmões com esta alquimia ainda indecifrada chamada amor cuja reação com os elementos do sangue e a gordura dos neurônios constitui a identidade. A permanência do ser, a qual não desfruto sem os frutos da reação entre teu nome e minha consciência.
Outorga-se luto oficial permanente pois morreu aquilo que eu fui, em função de ti. E não se trata de encontrar o que restou de mim, em mim, acerca de mim. Meu legado já foi encerrado ou, melhor, meu legado é impossível. Não há deuses contra os quais me revoltar. Não matarei Ares. Sou ateia demais para me meter a pactos com diabretes de 10 séculos para boicotar a obra dos Iluminados. Queimar igrejas é um exercício de mediocridade cujos frutos são somente a menor incoveniência de algumas famílias e a incrédula reação das senhoras. Meu luto é impossível e o corpo da vítima não se enterra pois ela só existiu nestes parágrafos e a segunda mãe desta filha sequer a recebeu no cartório. Filha bastarda de única mãe que se confunde entre o horário da creche e do serviço. Filha bastarda de única mãe que presenciou o tiro fulminante e caiu no asfalto e sangrava e seu sangue era a única coisa que brilhava naquela noite quente sem chuva, sem cinema, sem névoa pela qual fugia o assassino. Um tiro espontâneo gerado simultaneamente dentro do coração de mãe e filha e explodia para matar ambas, uma em segundos de hemorragia outra de uma infecção permanente de pólvora que nunca se desenvolverá a ponto de me matar antecipadamente. Infecção que causa dor e contra a qual não há remédio. Filha bastarda de única mãe que ainda esquece que morreu e ainda se pergunta que horas são e ainda se planeja para buscar na creche e carregar no colo uma sombra que não existe pois o Sol nunca mais nasceu e tudo é escuridão. Por isso honrarei sua memória como a alma penada que ela não pode ser pois ela nunca teve alma. Como todas as criaturas bastardas. Assombrarei a mim mesma para que minha filha possa ainda existir em algum canto miserável e irrelevante de mundo, adjetivos de sua curta vida: minha casa.
Não quero parcimônias, exercícios de yoga e respiração. Quero que se encontre o cadáver de minha filha e me enterre junta de mãos dadas a ela. Nada a trará de volta e sem ela não há bioquímica em meu sangue nem identidade a ser permanenciada. Sou nada senão uma plataforma da thanatomorphose representada por festim canibal onde os vermes comem meu corpo e assisto ao vivo no espelho o globo ocular já não ter mais em seus músculos a tenacidade necessária para segurar esta esfera pendurada pelos nervos que nada mais olha. Não quero outra filha pois já não há mais maternidade em mim. Gesto somente esta carta de testemunho do homicídio que nenhuma angústia existencial me preparou. A angústia de existir se aplica somente aos jovens que ainda existem e possuem dúvidas sobre o significado da vida. Eu me pergunto somente o significado de ainda servir como a única pessoa que ainda se lembra de minha menina que sequer sabia ler e teve o coraçãozinho explodido por dentro, por um projétil nunca disparado por um assassino que nunca saiu de casa. A paz de minha filha deve ser a de finalmente ser esquecida pela única pessoa que ainda espera a data de seu velório. Já não vivo. Já não tenho angústias. Mergulhei nas fossas abissais e fui ludibriada pela bioluminescência de peixes que brilhavam suas filosofias e diálogos sobre o Ser. Encontrei algo pior ainda indescrito. Encontrei o urro de uma criatura ainda invisível cuja quantidade de tentáculos ainda não se encontrou fórmula para enumerar. Encontrei o Horror. Vi esta criatura tragar mundos (o meu) por uma boca imensa que não se sabe onde inicia. Vi esta criatura tirar a vida daquela que mantinha a minha, mas ainda não vi a Criatura.
O mistério dos físicos é descrever aquilo que não está em lugar nenhum mas tudo altera. Não se põe pé no buraco negro, não se isola a matéria escura. Nunca se colheu relato do primeiro confuso indivíduo a presenciar uma Energia em sua cozinha que desapareceu em um décimo de segundo. Meu mistério é ver a Criatura. Ver a face de quem decide a morte de minha menina e pendura seu retrato em minha cabeceira mesmo depois de anos tentando diariamente o remover. Ver a face de quem segura meu corpo quando tento o soltar nos braços de fios elétricos envoltos em meu pescoço. Ver a face de quem insiste que a memória deste homicídio seja mantida, mesmo que este caso esteja arquivado sob a densa poeira marítima acumulada em seu N-a-oitava tentáculo que nunca se moveu desde sua origem pois tantos tentáculos tem que pode orquestrar minha destruição com muitos ainda disponíveis para ocultar os registros de seus feitos.
Quanto mais a Criatura pode fazer sem sequer saberem seu nome? Quantas pessoas mais pode colocar diante de mim, nenhuma das quais tenha interesse em defumar a maldição de meu corpo e cultuar minha filhinha, sem a qual não vivo, apenas padeço? Quantas vezes mais há de esculpir exemplares da raça humana com o único objetivo de reencenar o assassinato de meu bebê? Qual profissional devo remunerar pelo trabalho de ao menos redigir as letras que compõem seu nome, com as quais gastarei o resto de meus dias tentando descobrir a correta sequência? Quero ter o prazer de ao menos sussurrar seu nome em meu último suspiro. Esta criatura é meu Ares e como não há meios de o matar, não vejo sentido em buscar nada além de seu nome. E anunciar seu nome será meu legado e este será soterrado pelo mesmo tentáculo que arquiva o caso do homicídio que tento relatar.
Fácil seria ter algum Deus para matar.