Até mesmo os conceitos me abandonaram e já não posso confiar nem no dicionário

Há muitos anos revoguei a palavra "crença" de minha experiência. Este conceito, no contexto da espiritualidade, é medíocre. Não há condescendência. Honestamente sou incapaz de dizer se "acredito" em algo. Quando questionada avalio se há cabimento em dar a reposta verdadeira - "essa palavra não me significa nada, não posso responder" -.

Fui criada cristã. Ainda me recordo o quanto chorei na minha primeira confissão, em preparo para a primeira comunhão. Virei ateia. Conheci a umbanda. Conheci o candomblé. Nas festas públicas do terreiro, experimento transes e estados de consciência. Durmo, acordo, choro, flutuo, transcendo. Tentei formular para mim mesma a possibilidade da espiritualidade sem entidades, Jesus ou Exú. A última missa que assisti foi em 2015. Chorei copiosamente por uma hora e ingeri o corpo de Cristo. Já era ateia há pelo menos uma década. Ainda penso em assistir a próxima: minha necessidade de chorar vai além do alcoolismo caseiro e das músicas que Johnny Cash gravou dias antes de morrer. Já choro até mesmo ao ouvir Tchaikovsky.

Está aí minha crença? Sou tocada por Deus ao chorar copiosamente durante a missa? Creio que, se Deus existe, é o Deus enganador e o Mundo foi criado como veículo para a desgraça, como propuseram Platão e os primeiros cristãos. Todavia, Platão não era profeta e a pouca literatura religiosa que restou desta tese não deixou pistas sobre a existência de alguma espécie de paganismo. Cristo, de fato, veio à Terra para nos demonstrar que o Mundo é uma armadilha e o Criador, maléfico.

Está aí minha crença em Cristo? Quando penso em fugir do Mundo, sou tocada por Ele? Sua existência, por mais fantasiosa, causa consequências em mim. Leio, penso, choro copiosamente. Na Física a energia não é definida. Mede-se o estado inicial e final. A diferença entre ambos é chamada de energia. Se o estado da minha mente, enquanto partículas elétricas disparadas e capturadas por uma rede neural, modifica-se antes e depois de chorar copiosamente na igreja, Cristo existiu?

Não sei. Não me importo. O conceito de crença religiosa é menor. Incapaz.

Há meses aboli o conceito de "estar bem". Não foi consciente. Descobri que o conceito se dissolvera. Perguntam-me se estou bem. Não sei como a interlocutora define "estar bem". Quando questionada avalio se há cabimento em dar a reposta verdadeira - "essa expressão não me significa nada, não posso responder" -. Posso dar um breve retrospecto sobre os últimos estados nos quais estive - não variam tanto. O retrospecto é, de fato, breve.

Não sei o que é estar bem. Hoje não me alcoolizei, mas chorei copiosamente. Não fui tocada por Cristo, apenas não consegui processar a ideia de jogar fora o par de meias esquecidas no fundo da gaveta. Eram de uma ex. Guardei as meias. Há quando choro copiosamente enquanto estou bêbada. Reservei uma tag neste site para indicar, inclusive, quando o texto é produzido enquanto estou bêbada.

Certas vezes me alcoolizo muito. Outros dias, bebo pouco. Sinal que estive bem? Todos os dias acordo e sofro de um profundo pesar quando percebo que, sim, ainda sou eu quem acordou. Eventualmente o lamento por estar consciente demora mais. Passo algumas horas sem me dar conta o quanto odeio estar viva. É o máximo que posso dizer quando me perguntam se estou bem: "hoje pensei em morrer somente após o almoço!".

Não sei. Não me importo. Queria me importar. Mas, apenas, conto o intervalo desde a última vez quando chorei copiosamente.

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