Desde quando te conheci reconheço em teus tortos dentinhos a marca que deixas nas vidas que abocanha, com ou sem intenção. No meu cadáver encontrarão, em meu coração, como causa de morte, dentre várias cicatrizes, a tua e de teus dentinhos. Sempre foste graciosa, mas na verdade, nunca; repleta de insensibilidades e grosserias. Entenda que não é uma crítica. Perfaça-te com o mapa que Deus te largou numa garrafa à deriva e faça do teu coração o compasso com que navega a vida e será bela como foste desde quando te conheci. E este parágrafo introdutório serve como evangelho e eu sirvo como apóstola da dicção de teus dentinhos - sim, acho eles a maior gracinha e me repetirei até este texto perder toda sua qualidade poética. Esta qualidade porém não disponho em minha volição. Sou verdadeiramente bruta, enquanto tu és bruta na mesma quantidade em que te faça curiosa ao paladar. Não desejo poesias e as escrevo como forma de sobrevivência. Mas, se for possível diferenciar, espero que minhas palavras valham mais que toda minha estrutura neuro-psico-social e você receba este texto como nunca me receberia.
Em termos de avaliação apreciei cada momento contigo e nunca lamentei a falta de algo que não me ofereceu. Como um bom vinho seco, mesmo sem apreciar o amargor reconheci a beleza de todas as complexas variáveis que o compunha. Isso é amor. Quantas vezes apreciaste um vinho seco? E senti que, quantas vezes tenha sido, eu não era um acréscimo na contagem. De complexidades estão fartas minhas psicólogas incapazes de responder aos meus questionamentos e tenho consciência dos graus de arma biológica presentes em meu sangue. E não sou nobre. Sou mesquinha e quis de ti a incondicionalidade. Não quero evoluir o espírito. Quero apenas a certeza da fonte de doces palavras mesmo quando intermediadas pelas farpas criadas em teu coração, das quais eu não tenho culpa e nem mesmo ti. E tolerá-las-ia porque não me interessa quantas vezes o estribo perfurou tuas ancas, somente quantas vezes tu esteve diante de mim apesar dele.
Lembro quando, eventualmente, surgiu no divã a pergunta "o que eu realmente quero?" e surgiste como resposta. Não como bibelô lacrado com valor de revenda, mas como alguém para quem eu faria refeições sexta-feira a noite e ensinaria a degustar vinhos amargos em taça de cristal, na esperança que me viste como este mesmo vinho que mancha teus lindos dentinhos tortos. Da mesma forma lembro quando, após estar ciente de minha tentativa de suicídio - a primeira tentativa concreta depois de quase doze anos com a ideia na cabeça -, recebeu-me em teu aniversário e senti como se não havia espaço ou tempo para te dizer o quanto me manteria viva o gesto de te oferecer minha culinária. Desconfiei se as farpas em teu coração não eram, na verdade, muralhas. Qual fosse a resposta, sinto como devo ser lacrada sob orientação da Comissão Nacional de Energia Nuclear. Que em meus dedos não se esfarele um único grão de tua muralha, pois te quero protegida. Que tuas farpas permaneçam afiadas e afugente os trombadinhas e oportunistas, como cacos de vidro alojadas no cimento; eu que exija de volta o dinheiro pelas sessões com as psicólogas que nunca me fizeram resistente a elas. E que eu seja selada em tonel de chumbo e descanse quão longe de ti quanto queira.
Nada diga ou decida, se assim for melhor. De ti nada será cobrado. Só te peço, como favor, que revise tuas memórias e considere minhas "investidas" como genuínas demonstrações de alguém que te quis-quer o mais irreversivelmente próxima possível. Ainda almejo nossos pijaminhas em conjunto e te almejo em minha classe de quinta série para que eu possa te dar joias feitas à mão, pois estas são verdadeiras. Das formaturas e contratos de emprego nenhuma história menciono, pois estas já são banais e repletas de desconfianças.
Pela segunda vez: te amo.